terça-feira, 31 de março de 2009

Motivos óbvios

Troca-se uma pena usada com certo desgaste
Por um par de asas em bom estado. Basta que voe.
Trocam-se todas as idéias: porteira fechada
Por um espírito errante e vagabundo e solto
E muito menos idiota que o meu.
Troca-se o pulso de um relógio que já não mais funciona.
Aceita-se todo o tipo de despeito.
Troca-se toda a chance de eternidade
Por apenas um momento. (Pleno.)
Troca-se uma porção e toda a sorte
De pequenos esparsos pensamentos
Por uma quase idiota meia-verdade
Ou uma grande mentira.
Troca-se toda uma vida, em desespero,
Pelo mais simples que pode um coração sonhar.
Troca-se aquilo que se inexoravelmente é
Pelo que nos consome: o que não somos.
Trocam-se o dia pela noite, a ciência pelo mito,
Todo o dito pelo não dito.
Trocam-se a voz pelo grito, a paz pelo conflito,
O cheio pelo vazio pelo mar pelo rio,
A chuva pelo estio pelo sal pela súbita secura de tudo.
Troca-se o que não se agüenta mais pelo certo que é,
Por nos viver matando, por nos sorver com os dentes,
Por não nos permitir inconseqüentes e tortos que somos.
Troca-se esse poema esdrúxulo por um pouco de afago,
Pela falta que fazes, pelo flerte, pelo fim no início.
Troca-se tudo por motivo óbvio.

segunda-feira, 30 de março de 2009

Reclamo

Vende-se aldraba em ótimo estado.

Endo

O que quero dizer aqui vem por necessidade: não é a mim que presta contas, tampouco se estende das minhas particularidades. É uma espécie de in-vasão desse impulso que não se acomoda, tipo comichão que não tem nunca lugar preciso... é sempre mais ao lado... mais um pouco... Não! Pior. É dentro! Endo. Prurido procurando saída. Exit. Querendo romper o lacre. Mas nada de alarde! Em caso extremo, quebre o vidro e comece a soprar o airbag. Ou aperte-se o botão. Os botões, pois, diante do apocalipse, vieram salvar o mundo pela ameaça. Atrás de um botão há insondáveis outro mundo e outras religiões. De estranhas conexões. De entranhas. De pilastras em que patranhas espreitam em bando para sugar nossos ossos até o caroço. Não importa o bom senso. Pior se for bom moço. Então temos irreparável o inverossímil. Non sense. Míssil em direção ao centro. O perímetro afinal contra-ataca. Não há saída. No way. Vá baixando a calcinha! Colocando a carteira sobre a mesa. Que você... é a presa! Não precisa ter pressa! O lado de dentro é lá fora. Calma que o fora também é aqui dentro. Assim não precisamos nos preocupar com o tempo. Você está entendendo? Perfeito! Dentro das paredes-parênteses, a frase de cada um faz seu sentido, como este exato momento, vírgula! Agora não há mais tempo. Não vamos a lugar algum! Perdemos o andamento. Viu! Com um salto, soltou-se para cima feito balão de rima. Todas as pequenas profundas e profusas comemorações são um mesmo tributo, atos de um mesmo espetáculo - falhos. Por isso mesmo escrevo, creio. Creio porque escrevo que creio. Feio! E se esse escrevo parece óbvio, pois basta se justaporem caracteres que se perfila um sentido que já se nem tem. Há, porém, um alguém que escreve, mesmo anônimo, mesmo atônito, mesmo antônimo. Mas há a necessidade das marcas. E quanto mais sentido percorrem essas arcas de moral, mais referências são feitas reféns. As marcas têm seu poder de preferência e persuasão. São o verbo ‘estar’ na essência do desejo. Fazem tanto o significado atribuído por quem as produziu quanto por novos, mais ricos e profusos, que lhes decifrou os múltiplos sentidos. Que, enfim, as desesfingeou. Gira o fiar da roca a seda fina do pensamento. Mas voltemos ao tema que é a tecitura desta trama: Quem somos? Para onde rumamos? Por que viemos? Não era esse o tema? Mas que trema! Peço, por favor, que consultem seus bilhetes e documentos de identidade. Fiquem à vontade! Saibam-se. Enquanto isso, comunica-se que foi encontrado ego perdido amarrotado sob a mesa do bar lotado. Ou seria uma libido alucinada correndo nua pela rua ao lado? Ameaçam atacar caso não lhes atendam súplica de provar que (não) existem. Mas, aproveitando a relevância do assunto para enfim se ter uma história: basta se narrarem fatos como possíveis verdades com alguma riqueza de detalhes, tais que só poderiam ser contados por aquele que nunca esteve lá. Assim, superpõem-se camadas de selo ou tintura com que se vão recapando arquétipos. A cada novo soterramento de idéias uma nova salivada: atualizado! Esse é o projeto narrativo. E é nesse cenário webeano que se arma o papel utilitário do protagonista: fileiras interpoladas de batalhões sem exército de tal forma que acabarão por constituir necessariamente um longo e multicolorido tecido anárquico de combatentes solitários. Nunca há, em verdade, versão final. Tudo é o entrecho de uma grande contenda que nunca se encerra. O texto não segue existindo enquanto sopro em si, senão enquanto se expõe à leitura, lido e restituído no embate corpo a corpo. Há o f(r)actual da leitura. E se pressente a presença dos fatos. Uma ilusão do desejo de dar forma e consistência à incorporeidade que nos habita. Vozes interiores supraconscientes. Ego, O. Necessitamos de estímulos ou respostas? A razão não pode admitir que estejamos famintos e que necessitamos apenas de “matar para comer”? Armas à mão, rastreamos. Sabemos da vítima pelo cheiro, pelo faro, pela textura imaginária, pela gula. A luta pela sobrevivência é o que nos conflagra animais - nenhuma dessemelhança. Todos estamos aqui ou ali para sobreviver. Boca molhada de muco. Estas aí ainda? O que pensas do carma, da evolução espiritual? Rá, o deus. Rá, o riso. Rá, a iracidade súbita. Mas não mudemos de assunto e tomemos o problema da organografia dos corpos. Não sei ao certo por quantas reciclagens tudo passa. Aliás, esse ‘tudo’ na verdade se define por até onde se estende o quanto não me compreendo. Mas não me compreenda mal pelo que eu poderia e nunca fui. Sou assim mesmo. Até que não haja mais possibilidade. Então terei a poesia convulsiva e inútil. E serei definitivamente distenso e feliz.

:o)pEEEEI P ::::::::::::B

domingo, 29 de março de 2009

minimal I

Que relação há entre 'autopista' e 'autópsia'?
.....................entre monstro e de-monstro?

sábado, 28 de março de 2009



O homem, o cavalo e a tempestade

O passo lento atravessa a avenida agitada. O sol a pique. A barriga do grande homem começa a incomodá-lo. Estão encharcados pelo calor abafado, prenúncio de temporal. A fome impacienta o homem e esmorece o cavalo. Chibata, chicote, açoite.
_ Vamos, animal, que tu ainda morre de preguiça!
“Não fosse o peso morto da tua carcaça, já estaria em casa.”
_ Ah, se Deus desse o justo ao injustiçado, te trocava por uma camioneta usada quase nova.
“E se teu deus fosse mais arrazoado, me dava o campo e a soberba do meu passado.”
_ E ainda há quem diga... ha-ha!... que o cavalo é o animal mais lindo. Só rindo.
“E ora pensas tu, símio pelado, que a beleza te passa perto? Nem ao lado!”
_ Mais valha, que cavalo atrevido, que nem pra carga tem servido! E a pele e osso sobram pelo costado.
“E o que ganho pelo meu trabalho? Palha, chuva, maltrato...”
_ Tu pensas que não tenho quem mais cuidar? Mulher, filhos, sogra e um cunhado desocupado...
“E qual a minha culpa?”
_ Ora, acho que já estou te dando muita trela. Tens a sorte de não ser mais estropiado.
“Pois lhe posso dizer ainda, se a ti pensar causa mal estado, que se a culpa não é minha nem vossa, e muita coisa que fazer ainda se possa, que nesse trabalho não se encontra resultado. Sair daqui, voltar pra roça, é o primeiro. Depois, sei lá, arrumar uma terra de meeiro, ir preparando o canteiro, semeando, até colher o que te dê por direito: ferramenta, terra, alimento. Te verás crescer por dentro.”
_ E malhar feito um condenado ao trabalho forçado?
“Aqui, por certo, deves te sentir muito liberto. A colocar o dinheiro mirrado do nosso trabalho no teu bolso e em um minuto ter de tirá-lo, pagando sempre dívidas intermináveis. E, ainda, já que a revolta se esgota na chibata com que me bates, e nos teus filhos, te realizas com qualquer cena violenta que engoles na tevê.”
_ Vai, animal desgraçado, cumprir o teu trajeto, que eu por mim penso o que penso, sem de ti estar necessitado. Se não queres te manter calado, canta!
“Pois saiba, estulto presunçoso, que se amanhã acordo do outro lado, nada te resta que correr enlouquecido, que nem prum traste como eu tens dinheiro guardado. E sairás a vender as filhas, a correr os filhos pelo mundo, a procurar quem não lhe negue o fiado.”
O homem canta. Estala o relho nos quartos do animal que apura o passo para, em seguida, retardá-lo. Um trovejo espoca longe. Repentinamente, o cavalo sai, por conta própria, do trilho rente ao cordão da calçada e vai ganhando o meio da pista.
_ Arre, animal velhaco! – grita o homem enquanto dá um sofrenão com as rédeas, tentando endireitar o trajeto. Mas o cavalo persiste à revelia. Os automóveis buzinam, desviando bruscamente. Freios. Berros. O homem, apavorado, ergue-se na frágil cabina retesando a rédea, quase quebrando o pescoço do animal. A corda, que há muito precisava ser trocada, num laçaço arrebenta. O homem, na força do tirão, mergulha no asfalto. O trânsito convulsiona, carros engavetam.
O homem ainda pôde ver a carroça indo longe, desaparecendo entre as nuvens pesadas da tempestade.


quinta-feira, 26 de março de 2009

don scribal chegou
noite escura
para trazer-nos suas loucuras literárias
(pensa tratar-se de enxame de insetos-idéias
libertárias)
de um universo profundamente imaginário

don scribal e sua pena: lança, dardo, falonave
dizem-no “gritas para nada poeticida!”
mas sabe que tudo nada tanto significa
até que o nada acabe por significar-se

e don scribal resistente
em murmúrios loucos entredentes
risca em surto traços tortos
como se ... com lâmina amolada
abrisse picadas em campo aberto
espada em riste (risadas??)
na folha alva, nua e incerta

don scribal combatente
caminha à frente de um exército de todos
dizem-no “de tolos”
soldados voluntários experientes
que lutaram nos trinta e cinco continentes

don scribal cumpre seu destino:
vagar mundeando nossas mentes
sem ser cruel nem complacente

don scribal, chegado desde o sempre,
a noite a proteger-nos útero-ventre,
nos pede simplesmente que o mereça.
Serzim

Me disseram que eu poderia
Me disseram sim que
Muito provável
Mente
É possível que eu poderia
Ser
O que eu sou
Havia garantia
Certificado
E meu patrimônio empenhado
Fácil
Mente
Por um espelho
Um espelhinho
Do meu tamanhinho
Que será que eu era assim
Um serzinho?

Me disseram então vai
E me empurraram
Ladeira acima
E pensei: será que a vida
É toda feita assim de rima?
Muito provável
Mente
Mas não somente
Havia outra linha
Que logo me tratou de esguelha
Será que ser é assim
Uma espécie exótica de pentelho
Uma imagem no espelho,
Um serzim?

Me disseram que eu poderia, sim
Fazer um verso alexandrino
Canção de gesta pós-moderna
Tivesse eu a liberdade
Para definitivamente me meter na academia
Muito provável
Mente
Haveria muito a dizer sobre este tempo
E o verso não é, pois, o som da lira do pensamento?
Penso que penso o que penso, e canto
Será que alguém me sopra pelo fundo da boca?
Mas nem tudo é verbo
Olho-me no espelho baço do banheiro
Será que sou assim
Um ser partido ao meio
Sem começo, sem fim
Esse serzim?
O que seria do um sem o dois
O que seria do chiclete sem a boca
O que seria do soquete sem a lâmpada
O que seria da vírgula sem o ponto
O que seria do cigarro sem o fósforo
O que seria do bar sem a bebida
O que seria da segunda sem o domingo
O que seria do sábado sem o artista
O que será do bugio sem a mata
O que seria do obstetra sem a barriga
O que seria da agulha sem a linha
O que seria da linha sem o trem
O que seria de mim sem você
O que será de deus sem o ateu
O que seria da frase sem a palavra
O que seria da música sem a cachaça
O que seria dos caixões sem as alças
O que seria da polícia sem o crime
O que será do crime sem a polícia
O que seria do pente sem o cabelo
O que seria do belo sem o espelho
O que seria do sapato sem o pé
O que seria do feijão sem o arroz
O que será do corpo sem a comida
O que seria da vida sem a morte
O que seria do azar sem a sorte
O que seria do vaso sem a planta
O que seria do carro sem a jamanta
O que seria do pneu sem o aro
O que seria do progresso sem o sucesso
O que seria do comprimido sem a dor
O que será da dor sem o deprimido
O que seria da luz sem a sombra
O que seria do ser sem Hamlet
O que seria do Grêmio sem o Inter
O que será da televisão sem a tragédia
O que seria do juízo sem a comédia
O que será do vinagre sem o vinho
O que será do milagre sem o testemunho
O que seria do mas sem o pois
O que será do fim sem o recomeço
O que seria de você sem mim
agarra-se ao fio da meada,
ora por cima, ora por baixo
equilibrando-se em palavras indomadas
como outros idiomas
pisoteando o baixo calão da canalha
correndo sobre o fio da navalha
avançando linha a linha, lauda a lauda
em um hiato paraquedista
do fim ao novo prólogo
agulha perfurando o tempo
pena avançando à infinita
transitoriedade humana
leitura e diástole, sístole e escrita
uma linha(gem) tem de ser mantida
poste a poste
entre o início e o fim da vida
do início ao fim da linha
complexo de conexões aéreas
seta intergaláctica, nave futurista
bic escrita fina, tinta esfero-gráfica

inmigração

mão inglesa

tarde de sol inescrepuloso como a verdade das coisas
ainda que haja frestas, ainda que entre em colapso a consciência
refugio-me nesta mesa de um café fashion na avenida central
escondo-me da justiça; foragido legal, criminoso indelito
o direito foi-me sempre extremamente sinistro!
sou ambidestro apesar para piorar
trafego em mão inglesa
e sou definitivo pelo jus do contra!, não para sacanear
pois creio
assim permaneço, exilado no seio da ilha,
carregando comigo a condenação de um sentenciado ao sem-fim
nada sei, a não ser que não seria nada
sem mim!
sem tido


um poema é mais que o resultado da soma
de efeitos de linguagem, jogos semânticos, dionisíacos delírios
um poema são sim tormentos, membros decepados
rebentos que antes de nascer berram e gritam
esperneiam, resistem, e acabam entregues sob protesto
nessa espécie de parto (sempre) prematuro auto-induzido
do qual à luz se traz nova possibilidade de sentido