sábado, 28 de março de 2009



O homem, o cavalo e a tempestade

O passo lento atravessa a avenida agitada. O sol a pique. A barriga do grande homem começa a incomodá-lo. Estão encharcados pelo calor abafado, prenúncio de temporal. A fome impacienta o homem e esmorece o cavalo. Chibata, chicote, açoite.
_ Vamos, animal, que tu ainda morre de preguiça!
“Não fosse o peso morto da tua carcaça, já estaria em casa.”
_ Ah, se Deus desse o justo ao injustiçado, te trocava por uma camioneta usada quase nova.
“E se teu deus fosse mais arrazoado, me dava o campo e a soberba do meu passado.”
_ E ainda há quem diga... ha-ha!... que o cavalo é o animal mais lindo. Só rindo.
“E ora pensas tu, símio pelado, que a beleza te passa perto? Nem ao lado!”
_ Mais valha, que cavalo atrevido, que nem pra carga tem servido! E a pele e osso sobram pelo costado.
“E o que ganho pelo meu trabalho? Palha, chuva, maltrato...”
_ Tu pensas que não tenho quem mais cuidar? Mulher, filhos, sogra e um cunhado desocupado...
“E qual a minha culpa?”
_ Ora, acho que já estou te dando muita trela. Tens a sorte de não ser mais estropiado.
“Pois lhe posso dizer ainda, se a ti pensar causa mal estado, que se a culpa não é minha nem vossa, e muita coisa que fazer ainda se possa, que nesse trabalho não se encontra resultado. Sair daqui, voltar pra roça, é o primeiro. Depois, sei lá, arrumar uma terra de meeiro, ir preparando o canteiro, semeando, até colher o que te dê por direito: ferramenta, terra, alimento. Te verás crescer por dentro.”
_ E malhar feito um condenado ao trabalho forçado?
“Aqui, por certo, deves te sentir muito liberto. A colocar o dinheiro mirrado do nosso trabalho no teu bolso e em um minuto ter de tirá-lo, pagando sempre dívidas intermináveis. E, ainda, já que a revolta se esgota na chibata com que me bates, e nos teus filhos, te realizas com qualquer cena violenta que engoles na tevê.”
_ Vai, animal desgraçado, cumprir o teu trajeto, que eu por mim penso o que penso, sem de ti estar necessitado. Se não queres te manter calado, canta!
“Pois saiba, estulto presunçoso, que se amanhã acordo do outro lado, nada te resta que correr enlouquecido, que nem prum traste como eu tens dinheiro guardado. E sairás a vender as filhas, a correr os filhos pelo mundo, a procurar quem não lhe negue o fiado.”
O homem canta. Estala o relho nos quartos do animal que apura o passo para, em seguida, retardá-lo. Um trovejo espoca longe. Repentinamente, o cavalo sai, por conta própria, do trilho rente ao cordão da calçada e vai ganhando o meio da pista.
_ Arre, animal velhaco! – grita o homem enquanto dá um sofrenão com as rédeas, tentando endireitar o trajeto. Mas o cavalo persiste à revelia. Os automóveis buzinam, desviando bruscamente. Freios. Berros. O homem, apavorado, ergue-se na frágil cabina retesando a rédea, quase quebrando o pescoço do animal. A corda, que há muito precisava ser trocada, num laçaço arrebenta. O homem, na força do tirão, mergulha no asfalto. O trânsito convulsiona, carros engavetam.
O homem ainda pôde ver a carroça indo longe, desaparecendo entre as nuvens pesadas da tempestade.


Nenhum comentário:

Postar um comentário